Em reportagem publicada numa revista feminina, sob o título "Linda de morrer", a jornalista Giuliana Tatini aponta para o fato de que não somos feios nem gordos, mas que a mídia tenta nos convencer do contrário. Direcionada ao público feminino, TATINI (2001:54) escreve:
"O que se questiona é o processo que leva mais e mais mulheres a tomarem suas 'embalagens' como a razão única de estarem vivas sobre a Terra. Um processo (econômico, diga-se) que se inicia no pós-guerra com a celebração dos ícones da juventude em detrimento de todos os outros, que é em seguida impulsionado pelo dinheiro das indústrias de cosméticos, moda e mídia, e que acaba legitimado pelos homens, observadores implacáveis das nossas bundas e dos nossos peitos".
Embora o texto acima tenha sido dirigido à mulher, os homens, cada vez mais, se tornam vítimas do mesmo processo. A adulteração da carne não escolhe sexo. O'SICKEY cita Foucault: " O corpo está diretamente envolvido num campo político; as relações de poder têm dele um controle imediato; investem nele, marcam, treinam, torturam o corpo, forçam-no a executar tarefas, a realizar cerimônias, a emitir sinais " (BENSTOCK & FERRIS, 2002:35). Através do pensamento de Foucault é possível observarmos a maneira pela qual o corpo é materialmente usado como mercadoria. Vendemos a carne para comprar o que a alma não tem. Aceitamos a humilhação, a dor e a submissão de expor nossos corpos às mãos alheias do "cirurgião" em troca do vão prazer. Ainda que soe agressivo, as imagens contemporâneas mostram um corpo entregue à prostituição do consumo. Para aparecer, entregamos nossos corpos à oferta de mercado.
"Quid est corporis pulchritudo? Congruentia partium cum quadam coloris suavitate (O que é beleza do corpo? É a proporção das partes acompanhada por uma certa doçura de colorido)", apregoa Santo Agostinho citado por ECO (1989:45). A idéia de congruência, proporção, aparece recorrentemente no pensamento grego, como reproduz ECO (1989:45)"
O belo surge, pouco a pouco, de muitos números... A beleza não consiste nos elementos, mas na harmoniosa proporção das partes ". Em pleno século XXI, há diversas maneiras de interpretar essa "proporção". Quaisquer que sejam, levam-nos a um lugar comum: o espelho.
Ao olharmos para nosso peito, veremos algo pequeno demais para aquilo que queremos ser. Nosso nariz, observaremos, é pontudo, saliente, metido . A cor dos cabelos, dos olhos e a circunferência da cintura também não parecem apropriadas... A imagem que vemos não está em "harmoniosa proporção", concluiremos. Ao compararmos o que somos com o que queremos ser, surgem o vazio e a frustração que nos levam a consumir imagens de "ideais de beleza".
Somos expostos a essas imagens diariamente, seja nas vitrines e desfiles de roupas em belos corpos, seja em programas de televisão e na publicidade de moda. Quando olhamos para esses corpos "harmoniosos", imediatamente avaliamos e desaprovamos nosso próprio corpo, estabelecendo o que Sandra Bartky chama de "complexo de beleza da moda":
"...o complexo de beleza da moda dá forma a um dos sujeitos introjetados para os quais eu existo como objeto, percebo a mim mesma com deficiência. Nem mesmo sou capaz de controlar de alguma maneira essas imagens que dão origem aos critérios pelos quais essas deficiências aparecem(...) Todas as projeções do complexo de beleza da moda têm em comum o seguinte: são imagens do que eu não sou" (BENSTOCK & FERRIS, 2002:219).
No desejo de adquirirmos o que não temos para sermos o que não somos, corremos para uma clínica estética, onde nos ocupamos em transformar nosso corpo em campo de batalha, em laboratório de experiências atômicas (tamanha a intensidade), em objeto disponível, tal um defunto anônimo na aula de anatomia para estudantes de Medicina. Dissequemo-nos , pois.
Carol Shloss escreve sobre a fotógrafa de moda Diane Arbus, cujo trabalho ganhou fama nas décadas de 1950 e 1960:
"Diane observou que as pessoas quase nunca estão contentes com suas próprias peculiaridades e não descansam até haverem criado um outro visual. 'Toda a nossa aparência', observou, 'resume-se em dar sinais ao mundo para que nos considere de uma determinada maneira'. A seu ver, os esforços humanos despendidos na automodificação raras vezes funcionam, e na diferença entre o desejo e o resultado ela via a ironia essencial do universo" (BENSTOCK & FERRIS, 2002:125).
De fato, o que desejamos nem sempre sai como esperamos. Ainda assim, tentamos, incansáveis, mostrar certo poder sobre o corpo e o tempo. Em vão. " As pessoas podem desafiar as regras de sua própria criação através do corpo e das interferências que fazem nele, acreditando, assim, ingenuamente, que artefatos ou artifícios são suficientes para mudar o destino " (BENSTOCK & FERRIS, 2002:129). As técnicas de embelezamento - "emperuamento", "purpurinamento", rejuvenescimento - até podem enganar a aparência, mas um dia um olhar cansado envolto por rugas e escassos cabelos brancos irá se impor refletido no espelho, que, como cantou Toquinho, em Aquarela , "descolorirá" a imagem que um dia já foi jovem.
A ironia desse vaivém de modas, corpos e carnes pode estar numa pergunta: "Quando nos daremos conta de que esquecemos a receita mais simples: 'o doce colorido' de Santo Agostinho?" Se lembrássemos disso, como agiríamos com este corpo só nosso, subjetivo e íntimo?
"Talvez nós deixássemos nossos corpos engordar e emagrecer, apreciando as variações sobre o tema, e evitaríamos a dor porque, quando alguma coisa dói, ela começa a nos parecer feia. Quem sabe não passemos a nos enfeitar com verdadeiro prazer, com a impressão de estarmos adornando o que já é lindo? Talvez, quanto menor a dor a que submetamos o nosso corpo, tanto mais bonito ele nos pareça" (WOLF, 1992: 388).
Talvez... Enquanto isso, parece estar valendo tudo: o corpo treme aos caprichos da estética, a dor é atropelada para estranhezas tomarem forma nos limites da carne, a fantasia parece ser o único antídoto para a realidade. A "experiência estética" ganha espaço nunca antes imaginado. No fim, terá valido a dor?
Referências Bibliográficas
ARIÉS, Philippe & DUBY, Georges (diretores). História da vida privada, vol. 5 - Da Primeira Guerra a nossos dias , São Paulo: Cia. das Letras, 1992.
BENSTOCK, Shari & FERRISS, Suzanne (organizadoras). Por dentro da moda. Rio de Janeiro: Rocco, 2002.
CRESPO, Jorge. A História do Corpo . Rio de Janeiro: Ed. Bertrand Brasil, S.A., 1995.
ECO, Umberto. Arte e beleza na estética medieval . Lisboa: Presença, 1989.
MESQUITA, Cristiane . Incômoda Moda - uma escrita sobre roupas e corpos instáveis. Dissertação de mestrado para a Pontifície Universidade Católica de São Paulo, 2000.
MORIN, Edgar. A cabeça bem feita . Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
WOLF, Naomi . O Mito da Beleza - como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.
TATINI, Giuliana . Revista TPM . Dezembro de 2001. Ano 01. N?07. São Paulo: Editora TRIP