CONFIGURAÇÕES DO LUXO

PhD Sylvia Demetresco

Um olhar sobre a história do luxo, nos mostra como certos produtos preciosos, especiais ou carismáticos, se tornam desejáveis e sedutores, e mais do que isso - dão status pessoal. E para isso, as marcas investem em várias frentes, nas lojas, nas vitrinas, nas fachadas, na mídia impressa e televisiva, afinal em espaços em que mostram seus conceitos. Esse seduzir faz parte da manipulação que acontece na construção do discurso da vitrina.
Essa comunicação visual que contagia não só o olhar, mas até mesmo o corpo, ao criar um cenário de ilusão no qual, estão inclusos o gosto, o perfil, a vivência, o conhecimento e a novidade que o consumidor espera; nas imagens da cidade, algo que lhe suscite numa experiência estética e estésica, e que lhe informe também, o que está na moda, sugerindo-lhe um novo um estilo de vida.

Na antiguidade o luxo era espírito, pensamento, ornamento, qualidades que o homem primitivo exaltava sob a forma de festas em que oferendas tinham funções religiosas, cósmicas e mágicas. Os bens de luxo eram objetos de prestígio específicos a cada cultura, para contatar os espíritos e os deuses e a festa era necessária para consumir os excessos e mostrar a abundância.

A magnificência dos reis é outro modelo de relação entre o terrestre e o celestial: os reis/deuses - acrescentar hoje as estrelas do cinema, do esporte e da moda - concretizam o luxo nos seus palácios reais. Em todos os tempos os reis/deuses/stars devem possuir, exibir, viver com luxo para evidenciar sua superioridade. Festas, casamentos, torneios, corridas, enterros são ocasiões de eventos de galas suntuosas, que requerem todo um arsenal de encomendas: convites, roupas, flores, música, bufê, decoração, iluminação, etc. Nas sociedades aristocráticas o luxo não é algo supérfluo, é necessidade absoluta de representação.

Para os antigos greco-romanos o luxo é construir palácios para o público, na Idade média prevalece o parecer, os torneios, as festas, as cavalgadas e os ornamentos tempo em que há uma supremacia na ordem de vestir masculino. Os homens se arruínam para se vestir até o século XVII, enquanto o vestuário das mulheres é ainda sóbrio. Só quando Versalhes se torna o centro do mundo é que as mulheres têm a artificialidade do parecer e terão um guarda-roupa equivalente aos dos homens. No século XIX a mulher se torna a vitrina do homem, do pai, do marido ou do amante, mas é também o início do feminismo moderno, do luxo, da teatralização aos atributos da beleza feminina, da mulher consumidora. A idade moderna permite a simbiose inédita da mulher e do consumo. O ato da compra torna-se divertimento para todos, homens e mulheres.

Os produtos de luxo, encontrados nos “templos” das compras, isto é, nas lojas de marcas, insere em nossa sociedade a oferta democrática do luxo. Preços acessíveis, entrada liberada, publicidades que seduzem o público transformam os artigos de luxo em consumo desejável. Ao tempo, antes consagrado ao ritual das festas surge agora um tempo em que se consome. Da magia dos ritos permanece o preço das coisas e a promessa da felicidade. Pode-se dizer que há um ciclo envolvendo todo este programa de consumo que existe na ordem inversa da compra que são os valores de cada marca, como escreve
Andrea Semprini:

Aplicada à problemática da marca, a noção de valor apresenta dois elementos de interesse principais: de um lado, ela constitui um terreno comum pelo qual a marca pode colocar em contato o universo da produção e da mercadoria, com o do consumo e dos indivíduos; e de outro, ela mostra que este contato só pode se estabelecer pelo viés do sentido. Articulando valores, as marcas preenchem seu papel de mediação e de interpretação entre os produtos e os consumidores.¹

¹ Andrea Semprini, La marque, PUF, Paris, 1995, p.43.

Como qualquer mercado, o mercado do luxo sente a explosão dos custos de lançamento e de publicidade, pensa à durabilidade de sua imagem, reforça sua história e procura por outras opções de produtos. O luxo é promoção da imagem pessoal, mais do que imagem de classe. O consumidor de luxo, cada vez mais individualizado, faz emergir um tipo ideal multifacetado, que mistura diferentes objetos, preços e estilos, ao criar uma relação afetiva com os bens de luxo. Com o marketing sensorial, com a intenção de acionar os cinco sentidos, surge o luxo emocional, experimental e psicológico: o corpo, a saúde, as experiências, as viagens, o bem-estar, o teatro das aparências, assim o luxo tende a colocar-se a serviço do indivíduo privado e de suas sensações subjetivas, com o direito à felicidade. É normal aceder às marcas. A idade pós-moderna é o teatro da democratização dos desejos e das compras de luxo. E é a cultura de massa materialista e psicológica que a grande vetora da democratização da relação ao luxo.

A segurança, outro item do mercado de luxo, pouco discutido mas presente de todos os lados, quando se foca o meio dos artistas, atletas, empresários, políticos e outros, a segurança se torna um luxo quase paranóico. Entre a segurança passiva, que todos nós necessitamos como os equipamentos contra acidentes nos automóveis, o seguro das casas e das pessoas, caminha ao lado, uma segurança bem mais ativa com guarda-costas e carros blindados: um mercado focado num certo público que consome.

Outro tipo de luxo é o desafio das competições: a corrida de automóveis da Fórmula I, que custa uma centena de milhões de euros, para cada equipe que participa do evento em que carros, pilotos, mecânicos e outros personagens são visados. Espaço em que dezenas de marcas disputam de tudo, a saber que a equipe da Ferrari tem um orçamento que gasta quatro vezes este valor; outra competição de marcas, pilotos e valores é a corrida de carros especiais no deserto africano, a famosa Paris/Dacar. O mar também fica na mídia por várias semanas durante a regata America’s Cup, em que o empresário multimilionário, Ernesto Bertarelli, participa pessoalmente da corrida e patrocina a construção do seu veleiro, vencedor, Alinghi. Competições menos visadas, como as escaladas nas montanhas mais altas do mundo tais como Everest e o Mont Blanc são outras modalidades de luxo e o esporte.

Todas estas aventuras são, na realidade, corridas ao reconhecimento de homens e marcas de produtos que os acompanham, à imagem do patrocinador e do atleta, para espetacularizar uma marca, um corpo e um tempo, desafiando um espaço. E nada mais são do que práticas de aventura, patrocinadas por marcas de luxo como Rolex, Brietling, Hermès, Chanel, Dior, bancos, cigarros, joalherias, etc. Desafios pessoais também são modos de acionar certo tipo de luxo, como Denis Tito que paga 22 milhões de dólares para ser o primeiro não especialista a bordo de uma nave espacial, cuja possibilidade de participar significa ter dinheiro, satisfazer um desejo, experimentar sensações diferentes, proporcionar reconhecimento e estar na mídia.

A estratégia das grandes lojas de luxo exprime hoje este balanço de uma lógica atemporal, que eles implantam para o presente-futuro: uma marca de luxo deve perpetuar uma tradição e inovar, ser fiel a uma herança e ser moderna ao mesmo tempo. O luxo é hoje é hibridação de tradição e qualificação, reinvenção do passado, na lógica do presente. As marcas devem ser lugares de criação e memória, de valorização da sua própria história: o culto do antigo fundador que trabalhou para a edificação de um mito e que agora é perpetuado pela eficiência dos atuais gestores, pelas criações dos designers, por toda uma equipe que trabalha com fidelidade, que respeita um código, tudo isso para concretizar a permanência de uma marca.

O luxo aproxima-se do desejo de eternidade, do ser e da memória. Torna o inacessível, acessível – dá status. Na Europa, a cada duas compras, uma é dirigida a um produto de luxo ou de grife. Há um luxo de exceção que coexiste com um luxo intermédio mais acessível: um, banaliza o acesso ao luxo e o desmistifica e, o outro, reproduz a potência de sonho (utilizando preço e imagem). O direito ao supérfluo, o gosto pelas marcas é uma relação entre personalidade, luxo e individualismo liberal. A cultura do luxo cresce mesmo se coexistem reproduções falsas, com a hiper midiatização das grifes. Não só bolsas, relógios e canetas passam pela experiência do crescimento constante, chefes cozinheiros, designers, estilistas, tudo dá status ao “artista-produtor” e ao “consumidor-destinatário”. Tentar o consumidor, rejuvenescer as marcas, ousar para sobressair, criar o show midiático ou o espetáculo do excesso, esse é o modo pós-moderno de reconciliar criação e permanência.

Status - outra palavra-chave do mercado de luxo. E o que vem a ser status? Pode ser tudo aquilo que uma pessoa representa de positivo na estimativa de um grupo de pessoas: representação para os atributos que contribuem aos valores compartilhados pelo grupo. Isto não só inclui as qualidades pessoais, como também as atividades, as posses, a posição no grupo e outros valores que dão prestígio social, honras, proezas e realizações, sempre postas em evidência. Status não está necessariamente relacionado à posse e sim a um determinado grau de riqueza. Pode ser a beleza da mulher, o carisma de uma pessoa, algo que lhe confere poder. Para um objeto ter status, seu valor simbólico é sempre maior do que a sua função.

Os dois produtos que melhor representam este valor simbólico subjetivo, acima de sua função, como produtos são: a caneta-tinteiro e o relógio. A caneta-tinteiro tinha tudo para desaparecer do mercado: dispendiosa, frágil e não-confiável. Antigamente, vazava e borrava e por anos desapareceu. Voltou graças à invenção do Sr. Lewis Waterman, de uma válvula que interrompe a vazão precipitada: esta marca, com uma campanha publicitária muito forte e com um belo marketing, fez a caneta-tinteiro voltar como um objeto que dava status ao portador. Detalhes sofisticados na sua fabricação como ser de ouro, com esmalte, com pedras preciosas e penas especiais, ativaram o mercado. Além da Waterman, a Parker, a Montblanc, a Dunhill, a Cartier, a Cross e mais algumas apresentam canetas como verdadeiras obras de arte. Algumas destas marcas resolveram investir no valor subjetivo da caneta, numa fatia bastante estreita do um mercado. Waterman anuncia na sua mídia escrita “a história de dois gêmeos”², bem sucedidos, no qual um presenteia o outro, para marcar uma etapa em suas vidas; Parker anuncia sua caneta como “o instrumento de escrita mais bem elaborado do mundo”; Cross conta detalhes na sua fabricação: “Poderíamos ter usado ouro 14K em vez de ouro 18K. Poderíamos ter oferecido a garantia de um ano em vez da garantia de vida inteira. Poderíamos ter feito a caneta em um dia em vez de dez dias. Poderíamos ter-lhe oferecido uma escolha entre nove graduações de bico, em vez de 24 graduações de bico. Mas, neste caso, não seríamos capazes de usar o nosso chamariz de etiqueta”. Para o consumidor que tem poder aquisitivo, tem apetites requintados a serem saciados, que só compra o que lhe dá prazer e status e não se importa em gastar centenas de dólares num produto que o satisfaça temporariamente, eis o produto ideal.

Outro caso que se assemelha na questão, é o relógio suíço. Apesar dos problemas da indústria relojoeira suíça nos últimos tempos, ela sobrevive, devido a sua persistência, qualidade e tecnologia. A maioria das marcas suíças produz poucos exemplares, para um mercado exclusivo, concentra-se em sua tecnologia e em sua propaganda, sempre evidenciando a especificidade do mecanismo de cada relógio, o requinte de cada peça, a exclusividade do destinatário, a habilidade artesanal do relojoeiro, a apresentação rebuscada da embalagem, a versatilidade das funções e, em alguns casos, a alta resistência à impermeabilidade a água, em grandes profundezas. A comunicação destas marcas sofisticadas para as quais existe um mercado revela sempre o valor subjetivo do relógio, pois para marcar a hora hoje, em dia, basta um celular, um rádio, ou um painel digital que vive pela cidade. Mas cada marca de relógio tem seus chavões na mídia. Nos anúncios da marca Rolex, o seu relógio é “um símbolo de status”, ou como escreve em outra publicidade “Nós não vendemos produtos que dêem apenas à hora. Nós vendemos imagem”. Para a Patek Philippe o relógio é tão especial que diz: “Você nunca possui um Patek, você é mero guardião para as próximas gerações”.

² Texto analisado semioticamente por Jean Marie Floch, em Identités visuelles, Paris, PUF, 1995.

Poderemos pensar na formação da palavra luxo nos seus dois sentidos: “lux” é a unidade que mede a luz, a luminosidade, a luminescência do objeto, e, no sentido de luxúria, magnificência e comportamento desregrado com relação aos prazeres, como no verbete do Dicionário Houaiss de língua portuguesa ³. Entre luz é luxúria, o produto de luxo brilha, é magnífico e dá prazer!

O luxo vale apenas no momento em que é legenda e tem o êxito de construir sua imagem como um mito atemporal. O marketing de luxo deve promover produtos raros e caros e deve também orquestra o fator tempo. De um lado é necessário inovar, criar, espetacularizar, rejuvenescer a imagem da marca e, de outro, é preciso perpetuar uma memória, um “know-how”, uma atemporalidade, uma imagem de eternidade e de origem prestigiosa. O luxo aparece como o que perpetua uma forma de pensamento mítico das culturas comerciais, agora sacralizadas.



Lux s. m., Fís.1. unidade de intensidade de iluminação correspondente à iluminação de uma superfície que recebe de um modo uniforme o fluxo luminoso de um lúmen por metro quadrado.

Luxo sm. 1. vida que se leva com grandes despesas supérfluas e o gosto da ostentação e prazer. 2. bem ou prazer custoso e supérfluo. 3. recusa fingida.

Luxúria sf.1. viço, magnificência (a propósito de vegetações). 2. rel segundo a doutrina cristã, um dos sete pecados capitais. 3. comportamento desregrado com relação aos prazeres do sexo; lascívia, concupiscência.

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Sylvia Demetresco

Sylvia Demetresco, licenciada  em Artes Plásticas pela Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), com curso de Vitrinismo na Berufs Holderung In Schaufenster em Munique, Doutora em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP) e pós-doutorado na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais e no Instituto Universitário da França (Séminaire Intersémiotique au E.H.E.S.S.- I.U.F.).
É professora e conselheira do IBModa, atualmente leciona no curso “Universo do Luxo”, na Ecole Supérieure de Visual Merchandising, em Vevey, na Suíça e reside em Paris, onde atua como consultora em vitrinismo.